Anunciada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na terça-feira, a pavimentação de uma extensão de 20 quilômetros da rodovia BR-319 preocupa especialistas, que alertam sobre os riscos de crescimento do desmatamento no coração da Floresta Amazônica. Em julho, uma decisão liminar da 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas suspendeu a licença prévia, concedida no governo Bolsonaro, para a reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da estrada.
Advogado do Observatório do Clima, Paulo Busse destaca que o Ibama “vem alertando para os riscos socioambientais do empreendimento”. O especialista ressalta que, caso a obra seja retomada, as consequências serão “catastróficas e irrecuperáveis para a floresta, os povos que lá vivem e para o clima do planeta”.
— A mera expectativa gerada pela concessão da licença prévia já aumentou o desmatamento às margens do traçado da futura estrada. Os povos indígenas sequer foram ouvidos, o que viola uma série de direitos — aponta Busse.
Pesquisador da USP e da Universidade Federal do Amazonas, Lucas Ferrante aponta que a rodovia não tem viabilidade científica atestada e destaca que a seca — elemento levantado por Lula para justificar a importância da obra — não deve ser motivo para pressionar o licenciamento.
— O desmatamento na Amazônia é maior na beira das estradas. A pavimentação da rodovia provocaria uma situação extremamente crítica, que impacta no ciclo hídrico inclusive de outros países. Também não há contingente para combater o crime organizado caso o projeto vá a frente. O presidente precisa se guiar por critérios técnicos e reverter a obra imediatamente — avalia.
Já o advogado Gabriel Turiano, especialista em Direito Público, aponta que a “viabilidade de uma obra dessa magnitude depende da obtenção das licenças ambientais necessárias”. Turiano ressalva, entretanto, ser possível “encontrar alternativas que permitam o desenvolvimento econômico com a preservação do meio ambiente”.
— O principal benefício da realização da obra é permitir melhor trafegabilidade e, por consequência, crescimento econômico. Já os contras do projeto estão no desafio de preservar o meio ambiente e encontrar mecanismos para prevenir e controlar os riscos advindos da realização da obra e, após, da utilização frequente da rodovia — explica.
Construída durante a ditadura militar, no início dos anos 1970, a via foi abandonada na década seguinte e costuma ficar intransitável entre dezembro e maio por conta do lamaçal do período chuvoso. Questionada pelo GLOBO em abril, a gestão de Wilson Lima defendeu a pavimentação como “forma de tirar o estado do isolamento em relação ao restante do Brasil”.
Visita ao Amazonas
O anúncio da obra, ao custo de R$ 157,5 milhões, ocorreu durante uma visita de Lula ao Amazonas em meio a seca severa e onda de queimadas que atingem o Norte do país. Com cerca de 900 quilômetros de extensão, a estrada conecta Manaus a Porto Velho, no “arco do desmatamento”.
— É preciso parar com essa história de achar que a companheira Marina não quer construir a BR-319. Essa BR-319 foi construída nos anos 70. Ela foi abandonada por desleixo não sei de quem, ela ficou sem funcionar e hoje a rodovia tem uma parte para cá que funciona, uma parte para lá que funciona, e no meio são 400 quilômetros, que foram inutilizados — disse Lula durante discurso aos moradores de Manaquiri.
O presidente destacou que a importância da via se dá principalmente em momentos de seca e disse que a gestão federal vai reconstruir a estrada “com a maior responsabilidade”, em uma parceria com os estados.
— Já tive muitas discussões e enfrentamos grandes desafios para construir essa estrada. Existem 400 km que nunca foram reconstituídos. Em vez de continuar a briga, propus à Marina e ao Rui (Costa, ministro da Casa Civil) que começássemos com 52 quilômetros, divididos em 20 e depois 32. Precisamos ouvir todos os envolvidos e garantir que a estrada seja construída sem permitir que seja destruída por grileiros — afirmou o presidente.
Na decisão que suspendeu a licença prévia, a juíza Maria Elisa Andrade aceitou a ação civil pública movida pelo Observatório do Clima, rede que reúne dezenas organizações da sociedade civil. O grupo pedia a anulação da licença concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no último ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A magistrada acatou a necessidade de preexistência de governança ambiental e controle do desmatamento antes da recuperação da via e apontou que, sem este trabalho, os danos ambientais previstos nas áreas ao redor da via — que compreende 13 municípios, 42 Unidades de Conservação e 69 Terras Indígenas — não poderão ser evitados.
Nos cerca de 400 km de comprimento do “trecho do meio”, área correspondente à parcela mais preservada da floresta devido à dificuldade de acesso de desmatadores, o Ibama identificou sete Unidades de Conservação (UC), todas localizadas no estado do Amazonas. Segundo o Instituto, três dessas unidades são federais e as outras quatro estaduais.
A juíza também reconheceu a importância de considerar estudos de impactos climáticos para o asfaltamento da estrada.
“Em última análise, o subdimensionamento dos impactos ambientais de grandes empreendimentos tende a esvaziar compromissos nacionais assumidos para mitigar a crise climática”, aponta a juíza na decisão.
Caso a determinação seja descumprida, uma multa de R$ 500 mil pode ser aplicada sobre a administração pública.
Um grupo de trabalho foi criado pelo governo federal em novembro para apresentar estudos e propostas que promovam a discussão de soluções de otimização da infraestrutura da rodovia. O projeto foi incluído Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), pacote de medidas de infraestrutura prioritárias do Executivo.
Nos últimos sete anos, o governo federal gastou R$ 572,9 milhões na manutenção e na conservação da estrada, entre 2016 e 2023, segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Um dos pontos levantados por ambientalistas foi a possibilidade de crescimento do risco de zoonoses (doenças infecciosas transmitidas dos animais para os seres humanos), abrindo, inclusive, precedentes para uma nova pandemia.
Além disso, pesquisadores apontam que a pavimentação da rodovia visa a facilitar o acesso a áreas de exploração de petróleo e gás. Em dezembro, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental da obra e cria a possibilidade de uso de verbas do Fundo Amazônico — destinado a proteger a floresta tropical — no empreendimento.
Por: Luis Felipe Azevedo
Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia/2024/09/12/br-319-especialistas-apontam-riscos-ambientais-em-obra-defendida-por-lula-em-rodovia-no-coracao-da-amazonia.ghtml?giftId=0f2d8a67d8e7404&utm_source=Copiarlink&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilharmateria